25.9.07

Travessia


Esta estória não seria diferente das tantas outras experimentadas ao longo de 10 dias na Chapada dos Veadeiros, se além de meu amigo Felipe não estive nosso Guia Ranuro. Ou seria Hanuro? Ranuru? Não preciso me preocupar com a escrita. Porque para Ranuro e os outros mebros da comunidade Quilombola Kalunga vale o que se diz e o que se ouve. É assim que a história deste POVO segue viva.

A meta era chegar na cachoeira de "água azul", a Santa Bárbara. De Cavalcante - cidade de 3 mil habitantes a 100 km de Tocantins - até lá foram 30 km de sob céu limpo e terra suja. Logo estamos no território Quilombola. O Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga é o de maior área do Brasil, com cerca de 253 mil hectares,localizado no Nordeste do estado de Goiás. Cerca de 5 mil quilombolas vivem na região em mais de 30 comunidades.

A cachoeira recebe o nome de uma santa cristã comemorada na Igreja Católica Romana e na Igreja Ortodoxa, que foi mártir no século terceiro. Segundo a tal Wikipédia é considerada a protetora contra tempestades, raios e trovões. Antes de sermos apresentado a Ranuro, outro homem, o Sirilo, nos recebeu em sua casa, que funciona como um pequeno e simples centro turístico, ou uma espécie de sede da comunidade. Ele nos contou a tradição católica do grupo, apesar de admitir que há evangélicos. Fenômeno recente. Ironicamente, a televisão transmitia um culto evangélico.

O café foi servido. Ranuro quase recusou a nos ajudar, pois havia trabalhado na roça pela manhã e supunha que nos importaríamos por estar com as roupas sujas. Seguimos ao lado de nosso guia rumo à tão comentada queda d'água. Eram 4 km de trilha adentro. Muito sol. E o clima mais seco e desafiador de salivas que já senti.

Não demorou muito e ele nos perguntou algo assim:

- Quando vocês olham isso - apontando para o horizonte - o que vocês acham?

Nós tentamos demonstrar nosso fascínio e admiração pelo lugar. Comparamos a estética da cidade grande, os prédios e que não tínhamos aquela dimensão de horizonte no dia-a-dia. Não satisfeito, o guia provocou:

- E para morar?

Fomos sinceros e tentamos explicar que estamos acostumados com um ritmo de vida, com costumes e muitas outras coisas, que possivelmente dificultariam a mudança brusca.

Foi um breve e interessante debate das diferenças de mundos, valores, conhecimento, necessidades.

Ranuro salvo engano, está com 49 anos. Trabalhou por muito tempo na capital federal com "broca" em construção e também em uma fazenda. Quando Sentiu que o corpo já não acompanhava a velocidade exigida, decidiu: "Resolvi trabalhar só para mim mesmo". Voltou para sua comunidade, onde nasceu, e passou a cuidar da sua roça, aonde tem uma terra vermelha. "Nasce de tudo. Só não nasce o que a gente não planta", contou com orgulho. E é só isso que precisa para viver. E vive.

A relação com o dinheiro é pequena. Vive com o dinheiro do Bolsa família. Na realidade, usa as notas apenas para comprar remédio e alguma roupa. Aliás, Ranuro muitas vezes nem chega a sair do território quilombola para comprar novas vestimentas. Simplesmente - como simples é – encomenda para alguém que vá até lá para trazer alguma coisa para ele. Gosta mesmo dos cavalos - sonha em comprar um manga-larga, um dia - e da sua roça.

O ano é dividido entre o período de chuva e o de seca. O tempo de preparo da terra e o de cultivo. O resto é descanso. Cada um controla e divide o seu trabalho como considerar mais conveniente.

Durante mais de 1 hora de caminhada conversamos sobre a história daquele povo, a cultura, as festas, os bichos, comidas, vontades, clima. Enfim chegamos ao nosso destino: a cachoeira. Difícil descrever a beleza do local. E sem margem de erro, estava muito mais bonita porque fomos enriquecidos com belas histórias e experiências de um outro tipo de vida, que não estamos habituados a experimentar.

É inevitável se banhar na água gelada de desprendimentos e apegos.

E uma hora é hora de voltar. E os 4 km restantes e distantes, começavam a passar rápido... Após algum silêncio, Ranuro indagou sobre como funcionava esse negócio de férias. Contamos que tínhamos aqueles 15 dias de folga e mais outra quinzena 15 no final do ano.

O Guia ficou em silêncio. Parou. Pensou. E se indignou. Voltou o olhar para nós e com um certo sarcasmo afirmou com a firmeza de quem sabe o que diz:

- Rapaz, eu já to achando que é a roça é melhor mesmo que a cidade!

Foi risada.

"O importante não é a saída, nem a chegada, mas a travessia", Milton Nascimento